Universalidade e retroatividade
A exposição fotográfica de Miguel d’Almeida, que deixou dia 20 deste mês as paredes brancas da Livraria Centésima Página conduz-nos o olhar para o presente do mundo e a consciência para o futuro.
A exposição exibe um conjunto de fotografias que alguém facilmente chamaria “assombrosamente belo”, na medida em que a arte nos provoca reflecções, um distúrbio da pausa em que vivemos, como gota que cai num lago e provoca um irradiar imenso de movimento. Nas palavras do próprio autor, a Universalidade é a ideia principal neste seu trabalho, que expõe fotografias de vários locais do mundo, atualmente. “Às vezes, estando só num sítio, não nos apercebemos da perspetiva geral das coisas. As fotos também estão ligadas às experiências que eu tive nos sítios onde estive. Tentei fazer uma colagem geral do ponto de situação.”, diz-nos o fotógrafo, numa entrevista realizada no dia quase perfeito para reunir, na rua, e falar: o feriado do 25 de abril.
Acerca desta universalidade, Miguel d’Almeida confessa que a chamada “consciência coletiva” é uma questão que lhe interessa bastante, por ter amigos espalhados “por aí”. “Todos temos os mesmos ancestrais, partilhamos a mesma memória, mas às vezes temos memória curta. Como diz Slavoj Žižek, nós podemos olhar para o passado e entender os sinais que nele estavam contidos do futuro que estava para vir. Podemos olhar hoje para os sinais que vêm do futuro e, tal como diz Walter Benjamin, revelar os negativos do presente como se faz com uma fotografia, e ver neles sinais do futuro.” É maioritariamente sobre isto que se debruçam as fotografias sobre as quais nos debruçamos nós: esta ideia do um, dos vários locais e países fotografados que pertencem, essencialmente, ao mesmo mundo. Mas olhar para este presente desta forma pode ser alarmante: “Um dos casos mais graves desse futuro é o caso da Palestina. O que se vê ao olhar para a Palestina é uma comunidade enclausurada, e não há um único país que a reconheça como um país porque Israel tomou conta de grande parte do território. É um exemplo assustador desse tal futuro que parece estar contido no nosso presente.”, diz-nos Miguel d’Almeida.
Mas para “ver” não basta “olhar”. “Precisamos de deixar um bocado essa ideia de que as imagens valem mais que mil palavras e olhá-las, analisá-las. Interpretá-las. É um exercício mental. As coisas não falam por elas próprias, só falam quando nós já estamos empenhados em tentar entender.” Aqui Miguel d’Almeida fala-nos em relação aos problemas do mundo, à necessidade de os analisar para os poder resolver, mas arrisco-me a dizer que poderá aplicar-se a mesma lógica às próprias fotografias da exposição. Não basta ir e olhar, é preciso “ver”, algo que a própria natureza do trabalho nos incita a fazer.
Ao longo da conversa, falou-se ainda de várias questões atuais, como a sustentabilidade e a crise de migrantes. A primeira questão é iluminada pelo fotógrafo com um certo tom de esperança: “Se agora começarmos a aplicar as medidas a favor da vida e não a favor da morte, podemos recuperar o que perdemos ou pelo menos proteger as espécies que já temos.” Quanto ao segundo tema, Miguel d’Almeida apela a uma mudança de paradigma: “A maior parte dos migrantes não mudam porque querem. Como dizia Zeca Afonso (hoje é o dia do Zeca Afonso) “seja bem-vindo quem vier por bem”. Nós precisamos de criar novas linguagens, novos vocabulários para comunicar. Nós precisamos de uma comunidade internacional, não à semelhança das que temos hoje, mas uma nova comunidade internacional que tenha por base os valores da vida, da biodiversidade, educação, alfabetização, partilha, comunicação… Cada comunidade precisa de uma coisa diferente, não estamos todos com os mesmos problemas.” Mas esta mudança de paradigma, este pensar o mundo de forma mais compreensiva exige uma própria mudança interior que temos de estar dispostos a fazer, “Se nós queremos abordar os grandes problemas do mundo de hoje, nós temos de assumir que vamos perder a nossa identidade e que vamos mudar.”
Assim, as fotografias dos vários locais expressam essas identidades de cada local, de cada país, das quais todos fazemos parte mas que, para poder absorver na totalidade, das quais temos nós próprios de nos desprender. E desprender sobretudo da nossa identidade individual, que a vida e a cultura imprimem sobre nós e, sem a perder, temos de ser capazes de a deixar passear, estender-se o fio que a ela nos liga para que se aumente o espaço e possamos absorver mais, absorver um pouco de tudo até sentirmos que estamos dentro do um.
Texto integral de Sofia Magalhães para o jornal ComUM
Aqui se apresenta a versão original.