Uma Casa no Bairro: JAULA – TRABALHO

Jun 11 2021 21:00 – 22:00

Tanques de Couros Largo do Cidade , Guimarães

Espectáculo de teatro com Alunos do Curso de Teatro da Universidade do Minho em articulação com José Eduardo Silva e NIEP – Núcleo de Investigação em Estudos Performativos.

JAULA-TRABALHO é uma intervenção performativa no espaço público. Um exercício de criação onde a voz humana, o texto dramático e a improvisação se conjugam na materialização de memórias associadas ao sítio-específico dos tanques de Couros na Fraterna, para fazer a sua projeção na contemporaneidade. Partimos do conceito de casa, recentemente transformada em prisão e local de trabalho. Simultaneamente lugar de ócio e de neg-ócio, de isolamento e de convívio forçado, de encontro e de distanciamento social, de alegria contida e de revolta silenciada. Lugar de amor, de dependência e de violência. Lugar de contradições, mas também de paciência, de espera, de recolhimento e de esperança num mundo melhor que tarda em chegar.

Levado a cabo com jovens criadorxs, alunas e alunos da licenciatura em Teatro da Universidade do Minho, dirigidxs pelo actor e encenador José Eduardo Silva, este trabalho assenta em monólogos construídos a partir de excertos de textos retirados das seguintes obras dramáticas:

A Gaivota de Anton Tchèkov;

Bilingue de José Maria Vieira Mendes;

A Decisão de Bertolt Brecht;

By Heart de Tiago Rodrigues;

Purificados de Sarah Kane.

Colaboração:

Núcleo de Investigação em Estudos Performativos (NIEP – CEHUM);

Licenciatura em Teatro da Universidade do Minho;

Associação Ó da Casa


Do texto escrito à interpretação teatral

“Sim. Quando estou a escrever, é agradável. E ler as provas também é agradável, mas… assim que é impresso, já não posso suportar e vejo que não é o que devia ser, que é um erro, que não o devia ter escrito, e sinto-me desgostoso, podre na alma… (Rindo-se.) Mas o público lê e diz: «Sim, é interessante, com talento… Interessante, mas está longe de Tolstoi»”
in A Gaivota, Tcheckov

Sim. Quando estou a escrever… é agradável! E quando estou a atuar… também é agradável. Partindo do princípio: começámos por ter cerca de um mês e meio de aulas online, em que pudémos ler em conjunto A Gaivota, Purificados, A Decisão, By Heart e Bilingue. A leitura em conjunto dos textos
permitiu uma abordagem propriamente teatral e uma compreensão dos textos que seria impossível numa leitura silênciosa ou solitária.

Daqui partimos, deste pressuposto: que o Teatro é a voz alta, que o Teatro é a partilha e a compreensão em conjunto e em comum. No entanto aqui se partiu o assunto também: estávamos cada umx como cada qual, confinadxs em casa, a falar para um ecrã. Esta contingência faz com que esta primeira parte, que foi tão rica em informação textual, em estudos literários e interpretação con-textual se perdesse na memória de uma dor no corpo, de estar sentadxs e sozinhxs em frente a esse ecrã, tal como agora, no final, para escrever este relatório. Uma dor na ponta da coluna, a caminho dos ombros, de estar curvado perante a máquina calculadora / computacional, que ameaça engolir todas as nossas experiências de vida, e transformá-las em somas de zeros e uns, em substituição das multiplicidades da co-existência física.

No entanto, é também em frente destes ecrãs que xs filósofxs de hoje escrevem, e provávelmente xs dramaturgxs, sendo que há que dar ao diabo o que é do diabo e aceitar a situação.

Voltanto ao princípio: no princípio foi então o texto, a leitura do texto. A leitura leva à compreensão e a compreensão à interpretação. Aqui me deparo propositadamente: interpretação. Um verbo, não um nome. Interpretar, um texto, um sentido, uma ideia, como movimento duplo: interpretar como
absorção e apropriação do significado e interpretar (no teatro) como representação (de um papel) do papel, ou, do que nele está in/es-crito. Interpretar, um verbo transitivo, que indica um processo, um devir, uma transformação. Interpretar é decifrar, traduzir, re-significar. Sempre que interpretamos iniciamos assim um movimento de re-apropriação.

Do latim interpretari: “explicar, expôr, compreender”, interpretar é um ato, um processo, um entre- meio, um passo, um caminho. Interpreto um texto, ao lê-lo, mas ao fazê-lo, em voz alta, no Teatro, estou já a resignificar, a traduzir, tanto para mim, como para xs outrxs, dou a ouvir, dou a entender.
Explicar e Compreender, interpretar, é este duplo movimento que faz o Teatro.

“Mas o Partido quem é? Está sentado em casa rodeado de telefones? … O Partido somos nós. Tu, eu, ele – nós todos.”
in A Decisão, Bertolt Brecht

O Teatro quem é? Poderíamos dizer: o Teatro somos nós: Tu, eu, elx – nós todes! A prática Teatral é uma prática social e comunitária, desde que há sempre pelo menos duas pessoas envolvidas, embora geralmente muitas mais. O Teatro é então assim um nós, que se vai criando numa comunidade, numa conjunção entre o eu, o tu, e xs outres, que praticam, que observam, que falam, que ouvem e sentem. Ao ouvir xs outres sou influenciade e sou mudade. A prática Teatral é sempre processo, sempre transformação. O ser no Teatro é um ser à maneira existêncialista: A existência precede a essência, a mulher não nasce mulher, a mulher torna-se mulher, diria Simone de Beauvoir. Da mesma forma, xs actorxs não nascem, tornam-se. Através do movimento interpretativo, do movimento da prática per-formativa.

“É como falar sem a tua voz. As mesmas palavras que usas normalmente. Cada letra corresponde a um som. Se te conseguires lembrar do som que corresponde a cada letra podes começar a construir palavras.”
in Purificados, Sara Kane

Assim é o caminho da linguagem, algures, em algum momento surgem fonemas, que se tornam significados, que são interpretados (sem querer traçar as teorias da linguagem, apenas aponto para elas aqui), e mediante um suficiente consenso, pode-se estabilizar estas ideias em linguagem escrita,
que por sua vez se desenvolve mais ou menos autonomamente e eventualmente informa a linguagem oral, num fluxo de transmissão, como uma ponte, que une vida e morte.

Agora, do texto escrito à interpretação teatral vai um salto da leitura (absorção) à encenação (expressão). Ler, absorver e interpretar, e interpretando, encenar, apresentar, exprimir ou representar.

Representar é uma questão interessante porque representar é mostrar algo que não está lá. Assim ao representar, no teatro, o que somos, se não somos o que representamos, e se aquilo que é representado não está lá, mas apenas a sua representação, a sua sombra?

O corpo e a voz no trabalho performativo

“Oh meu corpo, faz de mim sempre um homem que interroga!”
in Peles Negras, Máscaras Brancas de Frantz Fanon

Tenho de começar por referir a questão do enraizamento, do Lian
Gong, que o Professor nos introduziu precisamente na altura em que
estava a pensar a relação entre os nós e as árvores, o conceito de
antropoarboriforme que ouvi de Joaquín Vila. Vale a pena pensar este
assunto! Vejamos a imagem do autor. Fica o apontamento…

O corpo e a consciência do corpo. O corpo faz de mim alguém que interroga. O corpo liga o eu axs outrxs. Xs nossxs corpxs, nós mesmxs. “Our bodies, ourselves” (Donna Haraway, 1991). Compreender que xs corpxs pensam. Que há corpos e corpas. Que o cuidado dos corpos é o cuidado do mundo. Especialmente neste momento em que o corpo é “vetor de transmissão”, perigo para xs outros, incubadora de vírus e virulências. Particularmente nesta era em que o corpo é a “última colónia” (Maria Mies), ou, talvez, o corpo como a última fronteira. “O corpo é o foco, o locus e o campo de batalha.” (Martha Rosler). O campo de batalha porque é ao nível dos corpos que se
desenvolve a (bio)política. É através do corpo que se vive a liberdade, ou a opressão. Os corpos então são agentes, pensantes, e passíveis de repressão. Libertar os (nossos) corpos dos seus/ nossos hábitos foi, e é, o trabalho que temos vindo a desenvolver. Libertar, criando, recriando, imaginando, soltando e fexibilizando o movimento. A imaginação é um caminho para a criação do novo movimento físico. Mas queremos, no entanto, ir para além da imaginação (puramente mental), para a prática. E através da prática chegar á po(i)ética (poiesis, ação). A proposta: ‘É fazendo que encontramos as soluções’. Fail, fail again, fail better, dizia Becket.

A prática como investigação, o corpo como cientista, o corpo como investigador das formas, da matéria, do movimento. O corpo como transmissor de pensamentos, ideias, imagens, sensações. Absorve e Expele. Sente e dá a sentir. A linguagem corporal como base da comunicação animal.
O corpo, especialmente nesta era, como casa do nosso ser, o eu, o nós, que devemos cuidar, amar, regenerar e (des)envolver, e (des)construir, alimentar e exercitar, para podermos libertar o ser, para podermos transformar o ser, para sabermos viver de outra maneira, para aprendermos a transformar o eu, para nos tornarmos outrx. O corpo é caminho para a alteridade.

“Esta é a voz do meu pensamento. É um número de magia para pôr à prova a minha existência. Vou apresentar-me ao mundo. Vou identificar-me. Este é o meu pensamento em voz alta. Para alguém ouvir o meu pensamento eu tenho de o dizer.”
in Bilingue, José Maria Vieira Mendes

O pensamento em voz alta. Para alguém ouvir, eu tenho de dizer. A voz é o instrumento (musical) mais completo de que dispomos, como animais, como seres. É o que nos permite articular (em conjunto com o corpo, e a linguagem corporal) o pensamento. Ter voz, ou dar voz. A forma e o conteúdo (do pensamento, da ideia) na expressão vocal, sonora, linguística. Nietchze dizia que Lou Salomé lhe engravidou (o ouvido) com a ideia do eterno retorno. Era através do ouvido, da escuta, que Nietchze absorvia o mundo, as ideias. O ouvido é talvez o ponto mais importante de absorção da nossa espécie. (Ou será a pele?) De qualquer forma, a voz é o vetor. A voz é o que caracteriza o
ser falante. A voz é o que permite a oralidade (afinal, a linguagem, talvez no seu estado puro). Ter voz é ser político. Falar é um ato político, ainda que o que se diga possa não ser. Falar é um ato de poder.

“É Belo, Tomar a palavra na luta de classes. Em voz alta e sonora chamar as massas à luta, Espezinhar os opressores, libertar os oprimidos.”
in A Decisão, Bertolt Brecht

Lembro-me destes textos que inscrevo aqui porque eles foram falados pelxs colegas. Lembro-me porque, como Nietchze, fui inseminado com estas palavras, engravidei. Não vale a pena nomear aqui, mas verbalizar. Sei também quem disse o quê. Lembro-me das palavras, das ideias. Absorvi
tudo. Tornei-me um Bibliotecário, tornei-me um ouvido, tornei-me um livro aberto, onde xs colegas, actorxs, intérpretes e tradutorxs escreveram as suas ideias, as suas histórias. Ouvi tudo. E tomei a palavra quando pude, e quando achei certo. Todes estivemos a falar e a ouvir. A pensar e a agir, entre palavras próprias e emprestadas. Entre palavras nossas e outras. Entre ideias, entre
mundos. Transformando o agora, num ontem e num amanhã, misturando tempos, como alquimistas.

Gostaria de me deter ainda neste ponto: estivemos a falar e a ouvir, a tomar a palavra e a escutar a palavra, a dar voz, a (ob)ter a voz. A ganhar voz, em conjunto, num todo, maior que a soma das suas partes. Gostaria de propôr que aquilo que falámos foi de alguma forma registado. Que ao falar, tomamos a palavra. Que ao tomar a palavra, assumimos responsabilidade. E ao assumir responsabilidade pela palvra somos seres eminentemente sociais e políticos, culturais. E se por um lado a natureza não é oposta à cultura, a política não se pode opor à sociedade, e assim, fomos tecendo formas políticas de relação comunitária. Não vou aqui desenvolver sobre os detalhes, mas reconheco os traços gerais: um grupo de Teatro é uma sociedade, uma comunidade, de seres sociais e subjectivos, uma comunidade política, onde se pratica a cidadania através do corpo e da voz, ação, pensamento e contemplação, poiesis e colaboração, simpatia e oposição, linguagem e semiótica.

A improvisação em contexto coletivo

A improvisação parece ter, pelo menos, duas possibilidades: ou é repetição do imaginário pre-existente ou se torna imaginação da possibilidade de uma outra expressão, fora do habitual.

Improvisar é procurar, pesquisar, investigar relações. As improvisações levam-nos a procurar formas e a encontrar soluções. Partir da possibilidade de
improvisação é partir de um vazio, ou antes, de uma indefinição, na busca da multiplicidade, na busca da forma. Improvisar no Teatro é ser, sendo. É ser-mais-que-ser. É expandir e multiplicar o ser. E improvisar em contexto coletivo é ser um entre outrxs, é ser parte, é ser com e também. É
confrontarmo-nos com a alteridade, com o receio e o prazer de partilhar. Com a acção e a reação. Mas mais do que isso, porque o mundo não é ação reação, nem sempre há uma reação de acordo com uma ação, e portanto é confronto com a indefinição, o acaso, mas também, a pre-definição e o
estabelecido na sociedade. O suposto-ser, o deve-ser. Ser ou não, aquilo que é esperado de nós, sendo que aquilo que esperamos uns-dos-outros é sempre estranho, por vezes misterioso, por vezes libertação, outras vezes sentimos como opressão, ou depressão. É nestas linhas que navegamos,
como funâmbulos. Por vezes supreendemo-nos e surpreendemos xs outrxs. Por vezes xs outrxs acham “boring” e levantam o braço. Outras vezes ficamos boquiabertos com o potêncial criativo dxs colegas. E vamos aprendendo a cada passo. Reflectindo e contemplando a experimentação da ação teatral no improviso. Viver é de certa forma, improvisar, agindo, a cada momento, com e sobre o potencial da vida. E através do improviso vamos dando passos a caminho de algo que é mais do que aquilo que era, a caminho de um ser diferente daquilo que foi. As ideias não surgem do nada, é preciso trabalhá-las agindo, pondo-as em prática, e submetê-las ao teste da sociedade, ao teste do olhar dx outrx, que pela sua ação, pode sempre, pelo menos, oferecer um ponto de medição, que nos permite entender-mo-nos melhor. Ser(es) são sempre múltiplos, relativos, poéticos, relacionais. Ser em relação a, e com, x outrx.